A grande mentira – ou de como é possível falar sobre mentiras escondendo verdades, e mentindo um pouco também

A Grande Mentira: Expondo as Raízes Nazistas da Esquerda por [Dinesh D'Souza]

Bora ser direto:

A análise de d’Souza é bem frágil e superficial. Escreve tal qual uma líder de torcida: sabe como excitar a multidão que, como ela, está cega de paixão pelas cores representadas em quadra – não se importando se meia dúzia de “mãos-de-alface” sofrem para fazer dois pontos a cada dez minutos. Para isso, usa frases de efeito, silogismos, meias-verdades… e tenta “lacrar” (pra usar a linguagem de hoje) parágrafo sim, parágrafo não.

O apelo retórico pode, por exemplo, ser um tiro no pé. Para caracterizar “comportamentos fascistas”, cita os questionamentos sobre a credibilidade das eleições americanas feitas pelos democratas após a eleição de Trump, exatamente como ocorreu na Italia e Alemanha nos anos 1920. Ora… Não foi exatamente essa a tática trumpista quando fracassou na tentativa de reeleição? Republicanos são fascistas quando questionam eleição e invadem o capitólio?

Em outro momento constrangedor, tenta questionar o paradoxo da tolerância do filósofo de origem judia K. Popper – isto é, a tolerância, se levada a seu limite, provoca seu próprio fim ao tolerar o intolerante. Para d’Souza, nada mais fascista que intolerar o intolerante. Compara, assim, o também filósofo de origem judia Henri Marcuse a Adolph Hitler: se para Hitler os judeus deveriam ser eliminados antes que os alemães o fossem, Marcuse defende a eliminação de fascistas antes que… Ou seja, desejar que o fascismo desapareça é o mesmo que almejar eliminação de judeus.

A defesa de fascistas segue em pergunta retórica: “É verdade que os fascistas não merecem ser ouvidos e é justificável negar-lhes direitos civis e constitucionais?”. Incrível, não? E a gente achando que só no Brasil alguém poderia achar tranquilo o direito de um partido nazista existir…

E o que dizer do recorte elogioso a uma frase de Lincoln, “sempre pensei que o homem que planta o milho deve, também, comer o milho”, frase mais objetiva, mas em mesmo sentido, que “o trabalhador tem o direito de ter as coisas que ele produz”, dita por um ex-presidente do Brasil quando perguntado sobre pobre comer camarão?

Um conservador que defende a legitimidade da existência do fascismo e elogia ideias esquerdistas, é isso mesmo, produção?

Além disso, ignora história básica: é erro crasso tratar, como se fosse o mesmo partido, os democratas atuais e aqueles do início do século XX. O Partido Democrata era conservador, reacionário e nada progressista – curiosamente, os republicanos apresentavam também outro perfil, bem diferente do atual.  Mas isso não serve à retórica, então d’Souza descarta. É nessa mesma ‘vibe’ que o autor exibe, orgulhoso, um paralelo entre as fazendas escravagistas sob patrocínio dos democratas aos campos de concentração promovidos por Hitler. Isso é tão desonesto quanto acusar D. Pedro II de antecipar Hitler por, no período imperial, liderar um país escravocrata.

Na metade final do livro, tenta insistentemente encaixar a suástica no Partido Democrata que beira ao ridículo. Assim, se Hitler denunciava apenas o capitalismo financeiro e se os democratas nada falam contra o “capitalismo produtivo”, logo portam-se como iguais. Sério. Lei de Godwin aqui é aplicada integralmente.

Escreve bobagens como “estrangeiros ilegais não são imigrantes”, o argentino “Che Guevara era nacionalista”, atividades de protesto esquerdistas  ‘parecem’ remontar ao ideólogo fascista Giovanni Gentile, “Marx não pediu que os trabalhadores do mundo se levantasse e se rebelassem contra a classe burguesa” (nem “Manifesto Comunista”, aquele do “trabalhadores do mundo, uni-vos!” esse sujeito leu?), “Marx havia apoiado o colonialismo como mecanismo necessário ao desenvolvimento de países atrasados”, fascismo e progressismo são irmãos gêmeos porque insistem que “todos devem se unir para cada um contribuir com sua própria ‘parcela justa’”, “aborto é eutanásia de bebês”…

No mais, o autor cai em sua própria arapuca ao “denunciar” os grandes problemas históricos do Partido Democrata; qualquer leitor médio percebe que praticamente todos os odiáveis detalhes históricos do partido estão longe do progressismo e pertíssimo de pautas reacionárias: antiimigração, supremacia branca, conservação de estruturas sociais desiguais, etc, etc, etc.

Se honesto e comprometido com a verdade, d’Souza reconheceria que a antiga ideologia do Partido Democrata, vigente até a Segunda Guerra, tem nome e não atende por “progressismo”, mas por “reacionarismo” – ou, se quisermos usar a mesma régua fluida e anacrônica da retórica do autor, “conservadorismo”.

Sobre política, sobre guerra – e sobre a desumanização do humano

Em tão pouco tempo, o brasileiro médio deu-se por especialista em política. O confuso e embaçado lodo político nacional pareceu, como um estalo, claro ao Tião da Borracharia, a Dona Ivone da Biscoitaria e ao Alemão do Caminhão.

Convenhamos: nunca antes na história desse país o debate entre esquerda e direita tornou-se tão popular. E simples. Simplório. Reconheceram a direita em um mito. Afastou-se do mito, passa para condição de esquerda – e geralmente tida como sinônimo de comunismo.

Assim, tornou-se popular a ideia de que até 2018 o Brasil foi governado pela esquerda – com exceção do breve período em que os milicos mandaram (e desmandaram) no país.

Talvez haja alguma bondade por esses especialistas na análise do Império – o saudoso império – posto ao chão pelos golpistas arruaceiros liderados por Deodoro, em 1889, o responsável pela inauguração do caos.

O positivismo, o mal da república, destruiu o Brasil e foi a semente do amplo e irrestrito “domínio esquerdista”.

Comunistas! Floriano Peixoto, Afonso Pena, Getúlio Vargas (o maior deles!), JK, Jango (o segundo!)… Maldita “herança marxista”!

Não fosse a “Gloriosa Revolução de 1964” e a consciente e patriótica eleição de 2018, o Brasil estaria pior que Cuba – dirão.

Ver analistas desse nível batendo cabeça na internet a respeito do complexo conflito entre Rússia e Ucrânia é a coisa mais óbvia do mundo. Estão lendo com lentes de formiga um fenômeno digno de rinha de elefante.

Mas o que dizer de gente que, em tese, são mesmo especialistas porque vivem, transpiram, suam, falam e escrevem sobre política, profissionais militantes geralmente a soldo de partidos e causas ideológicas em mesma situação?

Os partidos de esquerda não tardaram em manifestar-se. Aqueles mais à esquerda, viúvos da guerra-fria e saudosos daquilo que não viveram, adiantaram o apoio ao autocrata Putin.

No geral, argumentam que os russos reagem a agressiva ampliação do imperialismo burguês capitaneado pelos Estados Unidos na ultrapassada e anacrônica Organização do Tratado do Atlântico Norte.

Uma idiotice, porque Putin também representa claramente uma geopolítica com toques imperialistas e conveniente aos bilionários russos. E cá entre nós: o sinistro ex-espião da antiga e temida KGB soviética nada se importa com causas operárias que povoam o discurso de militantes de esquerda. Putin despreza Lênin.

Já à direita, nada muda. O bate-cabeça permanece. Enquanto alguns comemoram a vitória de Putin contra os globalistas (representados pelos Estados Unidos/Biden e União Europeia), outros enxergam em Putin um comunista que quer restaurar a União Soviética subjugando a Ucrânia.

Tempos confusos esses.

A guerra deveria ser percebida como deplorável à direita, quando o cidadão alheio aos conflitos perde seu bem mais valioso – a vida – e à esquerda, quando é sacrificada no altar do conflito a classe trabalhadora. Morrem civis que não conseguiram fugir da cidade atacada, morrem soldados de baixa patente que estão na frente da guerra – pouco importando que cores ostentam em seu uniforme. “Carnes desvalorizadas no mercado” tombam rumo a putrefação; sonhos, amores, projetos futuros desaparecem nos escombros. Às mentes psicopatas, confortavelmente instaladas em seus gabinetes, até pode restar a sensação e a adrenalina de um jogo. Para nós, o restante do mundo, o mais óbvio e natural deveria ser o mais intenso, vívido e explosivo horror.

Entusiasmar-se pela guerra é desumanizar-se.

Vida

Viver é uma coisa muito, muito difícil.

Você tem alguma facilidade?

Sei lá, foi abençoada pela natureza com beleza, ou com uma inteligência específica?

Sabe alguns conceitos importantes da física quântica ou da mecânica clássica?

Sabe alguma sacada genial daquele autor genial da antropologia que, a cada frase, ,mil compartilhamentos aparecem no face?

Tem franqueza quando alguém, do seu lado, fala sobre trigonometria?

Sua voz ecoa soberana quando alguns acordes brotam -mesmo que em sua mente – de alguma canção delicada sobre sentimentos que apenas alguns conseguem experienciar?

Pinta emoções em óleo ou em variações de cinza a cada variação que a vida lhe tras?

Não?

Nada disso?

Sim, nossa existência será justificada pela cinza fértil que abundaremos no solo quando, muitas horas depois, nosso coração der seu último sinal de vida.,

Alegre-se.

Essa é nossa função.

Cada centímetro de grama fertilizando a terra…

Essa é nossas função.

Somos responsáveis pela fertilização do mundo.

O tempo

Retilíneo, esgotável.

Passageiro, imutável.

À morte.

Vida que se esvai.

A realidade, aparentemente intensa, se encaminha para o ocaso.

É o crepúsculo de tudo.

À Morte

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.

 

Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.

 

Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!

 

Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera… quebra-me o encanto!

Florbela Espanca, poetisa portuguesa

Cansaço

Daí o cansaço te pega de tal maneira no início da semana que o suplício maior é  provocado pelo ponteiro do relógio, sempre a indicar o quão distante está a hora de adormecer e acordar em um novo-velho dia.

Leãozinho

Ruben era corajoso, valente. Gostava de exercitar sua primogenitura. Um exemplo de sua audácia – um atrevimento, até – esteve em seu envolvimento com Bila, concubina de seu pai. Nas palavras de hoje, era um homem carregado de testosterona. Seus dois irmãos imeditamente mais novos, Simeão e Levi, exercitaram a valentia com violência: comandaram o massacre a Siquém depois que Diná, uma de suas irmãs, foi assediada sexualmente por um homem da cidade.

Tanta testosterona teve um preço: a perda da primogenitura.

Jacó, em leito de morte, deu a primeira benção a Judá, o quarto filho. Dizia seu pai que ele era como um “leãozinho”. Muitos citam o leão enquanto um animal dominador para indicar a profecia de que, da tribo de Judá, se teria o rei que estaria a frente de todas as outras tribos. Mas o texto é claro: não se trata de leão, mas de leãozinho.  Não há explicação adicional sobre a expressão, mas cá penso se não é algo que combina a doçura e sensibilidade dos animais de pouca idade à ferocidade mobilizada quando necessária.

Testosterona, macheza, instinto, virilidade, só fazem sentido na natureza humana se combinado com a doçura e a sensibilidade.

É assim que se faz bons reis, bons líderes, boas pessoas. Doçura e firmeza, combinadas.

[Leitura: Genesis, 49]

 

Urbanóide

Ser recluso, optar por solidão, mudar-se pra longe, viver nas montanhas, adotar o eremitismo como filosofia de vida.

Isso é fácil.

Quero ver é se manter solitário no meio da multidão. Quero ver é criar, por décadas, um “eu-interior” solitário e incomunicável com a superfície. Quero ver é olhar para todos os rostos – mais ou menos próximos – e ver a palidez, a frieza, a incomunicabilidade tal qual o ermitão tem ao se encontrar com uma sequoia.

Estar só (voluntariamente) na multidão é para poucos.

Miséria

Nossa miséria não pode ser medida. É, de fato, incomensurável.

Achamos, na maior parte do tempo, que somos merecedores por tudo o que de bom recebemos. É uma estupidez.

Não somos merecedores de nada. Somos maus. A ira, a cobiça, a inveja… e tantos outros ‘desvios’ nos tomam.

Mas há quem, mesmo assim, se acha justificado por suas boas obras.

Não é.

Na balança, o que nós colocamos do nosso melhor ainda é pior do que esterco.

Tomar consciência, portanto, de como somos miseráveis não é um sinal de loucura. É a boa razão, uma iluminada razão, nos colocando no nosso devido lugar.

Loucura, mesmo, é depois de ter o reconhecimento de tamanha miséria escolher o afastamento d’Ele.

Um absurdo.

Um absurdo porque a razão diria que é exatamente a consciência de nossa total depravação que nos faria ainda mais dependente de Sua Graça.

Não é de fato uma loucura? Eu reconheço que sou mais miserável do que antes achava e, aí, resolvo que sou indigno de ficar na presença d’Ele. Se antes eu me achava um não-merecedor, não seria EXATAMENTE agora que minha dependência deveria estar a níveis críticos, de modo que todas as minhas ansiedades e preocupações se depositassem, unica e exclusivamente, aos pés d’Ele?

O sensato, creio, é fazer o que se espera. O fraco, ao se tornar consciente de sua fraqueza, se refugia no Castelo Forte. Afastar-se é jogar-se no abismo. É se entregar, em definitivo, à morte.

Que a misericórdia se estenda a nós: em força, em conhecimento, em sensatez. Que nossa miséria não nos atrapalhe a nos aproximar d’Ele. Porque, afinal, é Ele quem cuida de nós.

Destino

Se houvesse um manual do tipo coisas-que-um-rei-de-Israel-não-deve-fazer, certamente Acabe seria seu autor. Casou com uma mulher odiável (ou o que dizer de uma rainha que persegue seus próprios súditos?), permitiu altares de outros deuses e continuou a tradição dos reis de Israel, desde Jeroboão, a fazer o que não era a vontade de Deus. Acabe foi um legítimo vaso criado para a desonra.

Mas Acabe não era covarde.

Sua morte, nas mãos dos sírios, é uma prova de sua valentia. É, também, uma prova de que, ao plano de Deus, nada se pode opor.

Acabe desistiu de usar o aparato de proteção e a posição abrigada de um rei em frentes de batalha. Vestiu-se como um soldado qualquer. No meio de tantos soldados, lá estava o rei, de espada na mão.

A profecia a ele, entretanto, era de morte.

Os sírios não buscavam nenhum outro, a não ser Acabe. Josafá, rei de Judá, seu aliado, manteve-se como manda o figurino. Não demorou para que os sírios o achassem. Não fosse um grito, que denunciara ser ele Josafá, e não Acabe, estaria morto.

Na frente de batalha, uma flecha desavisada atingiu um dos vários soldados de Israel. A couraça o protegia, mas a flecha o atingiu entre as dobradiças da armadura. O ferimento provocou grave hemorragia. Sangrou até o fim da tarde, quando faleceu. O rei estava morto.

A morte de Acabe é um recado profético. Não conseguimos desviar do rumo daquilo que a nós foi decretado. Esquerda, direita, norte, sul, não importa. O destino será o mesmo. Não há opção. Não há escolha.

[Leitura: II Crônicas, 18]